A minha aventura começa quando estava
no sofá a pensar num sinónimo de “puta” (para colocar num email
dirigido a uma operadora telefónica sobre uma senhora sua comercial)
quando os meus olhos batem nos caixilhos da janela que sempre me
tinham parecido brancos, comprei-os como sendo brancos, facto
explícito numa factura de 2006 mas que, naquele momento se
verificavam em absoluto na cor bege. Mas um bege que parecia preferir
ser castanho. Um bege com mais problemas de identidade que eu.
Juntei a essa evidência um outro facto
que me pareceu de certa forma relacionado: na semana passada o meu
melhor amigo estava de passagem por Lisboa e pediu-me guarida por uma
noite. Fomos, naturalmente, jantar juntos e quando chegámos a casa
abri o sofá cama, dei-lhe uma toalha limpa e fui dormir pois tenho
trabalhado como se este fosse o meu último ano de trabalho e
quisesse trabalhar o mais possível pois para o ano era já a reforma
para sempre e não fosse eu ter saudades de trabalhar. Espero que me
tenha feito entender.
Portanto no dia seguinte fui trabalhar
da forma que mencionei (desenfreadamente) e quando à noite meti a
chave na porta e por consequência a abri, julguei estar já na onda
das alucinações por cansaço. A minha casa estava irreconhecível.
Não tinha roupa suja pelos cantos, por exemplo. A loiça estava
lavada. As antigas crostas de gordura e restos de comida que poisavam
sobre a superfície do fogão tinham desaparecido. O cotão que dava
aos rodapés um charme de western americano estaria certamente no
mundo nublado do cotão agora tão distante do meu.
Primeiro, como disse, pensei que
estaria a delirar. Mas essa certeza rapidamente deu lugar a outra
verdade: o meu amigo passou HORAS a limpar-me a casa. No fundo
passou-me um atestado de porca janada que nem pessoas sabe receber.
Embora tenha certamente despendido um
dia para tal tarefa, felizmente ou infelizmente (já não sei) a sua
ira anti-javardice não chegou aos caixilhos beges, nem aos vidros,
nem de traz dos móveis, nem limpou a gaveta dos talheres por dentro,
enfim, esse tipo de coisa que as pessoas pouco higiénicas não fazem
(no fundo o porco é ele – what goes around comes around).
Resumindo – alguém tinha de limpar
essas minudências com merda acumulada de há anos. Resolvi,
portanto, googlar “groupon promoção limpezas domésticas” e eis
que se afigura um voucher pensado para a minha particular situação.
Ficou agendado para sábado às 9 da
manhã, que horror.
Acordei nesse dia depois de ter dormido
intensivamente por quatro horas. Às 9h estava de banho tomado e com
um blush que conferia a aparência ideal para mandar limpar a casa
pela primeira vez na vida.
O tempo foi passando e não havia sinal
das senhoras aparecerem mas eu não dei por ela pois estava a ensaiar
o texto e a assertividade:
“as ombreiras das portas e os rodapés
não são menos que as outras coisas, também merecem ver um paninho”
“como devem calcular a panela que
está no frigorifico com um resto de sopa de Maio e toda a fauna/
flora que entretanto se gerou não é para ficar esquecida”
“as cadeiras da sala têm aquela
parte de madeira onde a pessoa tende a colocar os pés, está a ver?
Pois.”
Eis que chegaram as 10 da manhã. Como
tinha tudo a postos, convinha-me agora a contracena pela qual paguei.
Após oito telefonemas, não tive resposta. Às 13h com os olhos
tensos de nervos e depois de falar com o Lord Cão despejando-lhe o
meu lixo emocional mais comum
“tooooda a gente me engana!!! não há
ninguém sério neste país!! não posso confiar em ninguém/
cala-te, não me acalmo nada!! / nada me corre bem, não me basta a
merda que tenho acumulada em casa e ainda preciso de mais merda para
a minha vida!!”
recebi uma sms
“Bom dia. Tivemos um acidente e
viemos parar as duas ao hospital. Lamento mas so agora tive acesso ao
telemóvel para a informar. Entraremos em contacto 2af para remarcar.
Mto obg e desculpe”
Claro que na segunda-feira ninguém
entrou em contacto comigo. E não foi possível remarcar e exigi o
meu dinheiro de volta. Dinheiro que me deu alento e possibilidade
para comprar um outro voucher de uma outra empresa de limpezas
domésticas.
Estava confiante que desta vez ia dar
tudo certo pois ao contrário da primeira tentativa, os contactos
foram todos feitos por telefone e as conversações tinham sido
profissionalmente agradáveis.
Do outro lado da linha era fácil
imaginar a figura – uma senhora nos seus quarenta, toda em Lanidor
e Massimo Dutti, muito elegante e qualificada, que geria uma equipa
de ágeis agentes da limpeza instruídas para o efeito.
Por fim, quando lhe pedi a limpeza para
sábado às 9h, apenas estranhei que tivesse dito, “já lhe envio
uma sms a confirmar em absoluto, tenho de conferenciar cá em casa”.
Mas bom, talvez tivesse uma área de camaratas onde dispunha as suas
formiguinhas da limpeza.
À data e hora acertadas eu estava
novamente preparada. Quando a campainha tocou, abri a porta e vi uma
senhora que eu parecia conhecer de vista das reportagens da
Concentração Motard de Faro. Casaco de cabedal, jeans
rasgados, óculos escuros a servir de bandolete no cabelo, capacete
numa mão, spray limpa vidros na outra.
“Bom dia! Não feche a porta que vem
aí a outra pessoa, está só a estacionar. Pode ir explicando o que
é para fazer...”
E assim o fiz. Até ser interrompida
pelo knock knock de um senhor que eu também conhecia de vista de
alguma peça jornalística sobre motards, envergava uma T-Shirt dos
AC-DC, cabelo semi-grisalho apanhado num rabo de um metro e meio,
casaco de cabedal, capacete numa mão e spray de limpar os móveis na
outra.
A playlist que tocava na sala (o que
quer dizer que se ouvia na casa inteira pois estamos a falar de 50 m2
e toda a esquizofrenia associada “Ai agora estou na sala, ai que
agora já é quarto. Não! Cozinha. Minto! Casa de banho!”) estava
a reproduzir os últimos segundos da última faixa de um álbum dos
Belle and Sebastian.
Num momento mágico, que teve apenas a
intervenção de um clique da minha parte, passou a Pink Floyd.
Os caixilhos ficaram impecáveis.